Ai que saudade do meu latim

Euclides Benedito de Oliveira
Publicado no jornal O Estado de São Paulo, 12 de agosto de 1990

Não faz muito tempo o Latim era disciplina obrigatória no ginásio, com aperfeiçoamento para aqueles que seguiam o curso Clássico. Aprendiam todos a declinar a “rosa” e o “qui, quae, quod”. Os mais espertos acompanhavam César na travessia do Rubicão ou chegavam a declamar as catilinárias de Cícero.

No vestibular de Direito, o latim era eliminatório. E muito se exigia, como ainda se faz preciso, no estudo do Direito Romano. Hoje é língua morta. Talvez a usem os padres na leitura do breviário ou nas visitas a Roma. Não mais em missas, batizados ou qualquer outro ato litúrgico. Apesar disso, e mesmo sem que ninguém o estude, o Latim continua vivo e de largo uso na linguagem forense, tanto a falada quando a escrita. Sabem-no de ouvido ou por erudita leitura já os estudantes, capricham nele os aplicados estagiários e forram-se de usá-lo os causídicos militantes, assim como os jurisconsultos e magistrados, abrilhando seus arrazoados ou decisórios.

Acontece que, por incúria ou natural desconhecimento, cometem-se certas barbaridades no uso do latinório. Algumas vezes passam desapercebidas, ou até se disseminam como expressões de alto louvor. Por exemplo, é bastante usada a expressão “data venia”, em sinal de respeitosa discordância. Mas há quem não se contente, e prefere o superlativo “datissima venia” , em inadmissível aportuguesamento do tempo verbal. Não poucas vezes ocorre confusão do tradutor. Como no caso do recém – formado que, açodadamente, trocou uma petição de “Habeas Corpus” por “Corpus Christi”. Pior ainda a referência ao célebre conclamo de César – “alea jacta est”-, que um rábula do interior entendeu como “o alho está no jacá” (“sic”). Mais curiosa e engraçada a inicial de inventários narrando que o “de cujus” deixou uma decuja e dois decujinhos… Se era latinista, o autor da herança deve ter se revirado no túmulo.

Há quem se ofenda, por estranhar os sons de frase dita em tom agressivo: “Mater tua mala burra est”. De pronto, rebate: “É a sua !”, quando na verdade apenas se disse: “Tua mãe come maças (mala) estragadas (burra)”.
Muito feio quando se era na pronuncia. E o risco é grande em face da invasão do inglês, onde o “i” soa como “ai”. Em sustentação oral, pedindo o adiamento da audiência por estarem as partes em vias de composição, frisou o peticionário que o processo deveria ser suspenso “saine daie”, querendo dizer “sine die” (sem dia certo) .

Fato real, bem pitoresco, deu-se na sala de audiência de uma Vara Criminal. Era um caso de lesão corporal simples, sem testemunhas de acusação, a vítima desaparecida. Como o réu alegava legítima defesa, certamente seria absolvido. Apesar disso o defensor fez questão de ouvir suas três testemunhas. Aconteceu que uma delas, para surpresa geral, disse que tinha presenciado a briga. E desatou a falar, contando que o réu havia provocado e perseguido a vítima, sem razão plausível, aplicando-lhe um valente pontapé no traseiro. Então o promotor, comentando a situação desfavorável ao réu, ocasionada pela “abundância” da própria defesa, fez uma observação jocosa: “Pois é, dizem que “quod abundat non nocet”, mas desta vez o “abundat” prejudicou!”. O advogado entendeu mal a última expressão em vista do “t” mudo e lançou indignado protesto ao meritíssimo juiz, em defesa de seu cliente e da própria moralidade da Justiça!